Pesquisas indicam o aumento da migração religiosa entre os brasileiros, o surgimento dos evangélicos não praticantes e o crescimento dos adeptos ao islã
Acaba de nascer no País uma nova categoria
religiosa, a dos evangélicos não praticantes. São os fiéis que creem,
mas não pertencem a nenhuma denominação. O surgimento dela já era
aguardado, uma vez que os católicos, ainda maioria, perdem espaço a cada
ano para o conglomerado formado por protestantes históricos,
pentecostais e neopentecostais. Sendo assim, é cada vez maior o número
de brasileiros que nascem em berço evangélico – e, como muitos
católicos, não praticam sua fé. Dados da Pesquisa de Orçamento Familiar
(POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
revelaram, na semana passada, que evangélicos de origem que não mantêm
vínculos com a crença saltaram, em seis anos, de insignificantes 0,7%
para 2,9%. Em números absolutos, são quatro milhões de brasileiros a
mais nessa condição. Essa é uma das constatações que estatísticos e
pesquisadores estão produzindo recentemente, às quais ISTOÉ teve acesso,
formando um novo panorama religioso no País.
Isso só é possível porque o universo espiritual está tomado por gente que constrói a sua fé sem seguir a cartilha de uma denominação. Se outrora o padre ou o pastor produziam sentido à vida das pessoas de muitas comunidades, atualmente celebridades, empresários e esportistas, só para citar três exemplos, dividem esse espaço com essas lideranças. Assim, muitas vezes, os fiéis interpretam a sua trajetória e o mundo que os cerca de uma maneira pessoal, sem se valer da orientação religiosa. Esse fenômeno, conhecido como secularização, revelou o enfraquecimento da transmissão das tradições, implicou a proliferação de igrejas e fez nascer a migração religiosa, uma prática presente até mesmo entre os que se dizem sem religião (ateus, agnósticos e os que creem em algo, mas não participam de nenhum grupo religioso). É muito provável, portanto, que os evangélicos pesquisados pelo IBGE que se disseram desvinculados da sua instituição estejam, como muitos brasileiros, experimentando outras crenças.
É cada vez maior a circulação de um fiel por diferentes denominações – ao mesmo tempo que decresce a lealdade a uma única instituição religiosa. Em 2006, um levantamento feito pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris) e organizado pela especialista em sociologia da religião Sílvia Fernandes, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), verificou que cerca de um quarto dos 2.870 entrevistados já havia trocado de crença. Outro estudo, do ano passado, produzido pela professora Sandra Duarte de Souza, de ciências sociais e religião da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), para seu trabalho de pós-doutorado na Universidade de Campinas (Unicamp), revelou que 53% das pessoas (o universo pesquisado foi de 433 evangélicos) já haviam participado de outros grupos religiosos.
Isso só é possível porque o universo espiritual está tomado por gente que constrói a sua fé sem seguir a cartilha de uma denominação. Se outrora o padre ou o pastor produziam sentido à vida das pessoas de muitas comunidades, atualmente celebridades, empresários e esportistas, só para citar três exemplos, dividem esse espaço com essas lideranças. Assim, muitas vezes, os fiéis interpretam a sua trajetória e o mundo que os cerca de uma maneira pessoal, sem se valer da orientação religiosa. Esse fenômeno, conhecido como secularização, revelou o enfraquecimento da transmissão das tradições, implicou a proliferação de igrejas e fez nascer a migração religiosa, uma prática presente até mesmo entre os que se dizem sem religião (ateus, agnósticos e os que creem em algo, mas não participam de nenhum grupo religioso). É muito provável, portanto, que os evangélicos pesquisados pelo IBGE que se disseram desvinculados da sua instituição estejam, como muitos brasileiros, experimentando outras crenças.
É cada vez maior a circulação de um fiel por diferentes denominações – ao mesmo tempo que decresce a lealdade a uma única instituição religiosa. Em 2006, um levantamento feito pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris) e organizado pela especialista em sociologia da religião Sílvia Fernandes, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), verificou que cerca de um quarto dos 2.870 entrevistados já havia trocado de crença. Outro estudo, do ano passado, produzido pela professora Sandra Duarte de Souza, de ciências sociais e religião da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), para seu trabalho de pós-doutorado na Universidade de Campinas (Unicamp), revelou que 53% das pessoas (o universo pesquisado foi de 433 evangélicos) já haviam participado de outros grupos religiosos.
Nogueira, muçulmano há um ano: no Rio, os convertidos
saltaram de 15% da comunidade para 85% em 12 anos
“Os indivíduos estão numa fase de experimentação do religioso, seja
ele institucionalizado ou não, e, nesse sentido, o desafio das igrejas
estabelecidas é maior porque a pessoa pode escolher uma religião hoje e
outra amanhã”, afirma Sílvia, da UFRRJ. “Os vínculos são mais frouxos, o
que exige das instituições maior oferta de sentido para o fiel aderir a
elas e permanecer. É tempo de mobilidade religiosa e pouca
permanência.” Transitar por diferentes crenças é algo que já ocorre há
algum tempo. A intensificação dessa prática, porém, tem produzido novos
retratos. Denominadores comuns do mapa da circulação da fé pregam que
católicos se tornam evangélicos ou espíritas, assim como pentecostais e
neopentecostais recebem fiéis de religiões afro-brasileiras e do
protestantismo histórico. Estudos recentes revelam também que o caminho
contrário a essas peregrinações já é uma realidade.
Em sua dissertação de mestrado sobre as motivações de gênero para o
trânsito de pentecostais para igrejas metodistas, defendida na Umesp, a
psicóloga Patrícia Cristina da Silva Souza Alves verificou, depois de
entrevistar 193 protestantes históricos, que 16,5% eram oriundos de
igrejas pentecostais. Essa proporção era de 0,6% (27 vezes menor) em
1998, como consta no artigo “Trânsito religioso no Brasil”, produzido
pelos pesquisadores Paula Montero e Ronaldo de Almeida, do Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Para Patrícia, o momento
econômico do Brasil, que registra baixos índices de desemprego e
ascensão socioeconômica da população, reduz a necessidade da bênção
material, um dos principais chamarizes de uma parcela do
pentecostalismo. “Por outro lado, desperta o olhar para valores
inerentes ao cristianismo, como a ética e a moral cristã, bastante
difundidas entre os protestantes históricos”, afirma.
Em busca desses valores, o serralheiro paraibano Marcos Aurélio Barbosa,
37 anos, passou a frequentar a Igreja Metodista há um ano e meio.
Segundo ele, nela o culto é ofertado a Deus e não aos fiéis, como
acontecia na pentecostal Assembleia de Deus, a instituição da qual
Barbosa foi devoto por 16 anos, sendo sete como presbítero. O
serralheiro cumpria à risca os rígidos usos e costumes impostos pela
denominação. “Eu não vestia bermuda nem dormia sem camisa, não tinha
tevê em casa, não bebia vinho, não ia ao cinema nem à praia porque era
pecado”, conta. Com o tempo, o paraibano passou a questionar essas
proibições e acabou migrando. “Na Metodista encontrei um Deus que
perdoa, não um justiceiro.”
É cada vez mais comum ex-pentecostais, como o atual metodista Barbosa,
que foi pastor da Assembleia de Deus (acima), aderirem às protestantes históricas
A teóloga Lídia Maria de Lima irá defender até o final do ano uma
dissertação de mestrado sobre o trânsito de evangélicos para religiões
afro-brasileiras. A pesquisadora já entrevistou 60 umbandistas e
candomblecistas e verificou que 35% deles eram evangélicos antes de
entrar para os cultos afros. Preterir as denominações cristãs por
religiões de origem africana é outro tipo de migração até então pouco
comum. Não é, porém, uma movimentação tão traumática, uma vez que o
currículo religioso dos ex-evangélicos convertidos à umbanda ou ao
candomblé revela, quase sempre, passagens por grupos de matriz africana
em algum momento de suas vidas. Pai de santo há dois anos, o contador
Silvio Garcia, 52 anos, tem a ficha religiosa marcada por cinco
denominações distintas – e a umbanda é uma delas. Foi aos 14 anos,
frequentando reuniões na casa de uma vizinha, que Garcia, batizado na
Igreja Católica, aprendeu as magias da umbanda. Nessa época, também era
assíduo frequentador de centros espíritas. Aos 30, ele passou a cursar
uma faculdade de teologia cristã e, com o diploma a tiracolo, tornou-se
presbítero de uma igreja protestante. Um ano depois, migrou para uma
pentecostal, onde pastoreou fiéis por seis anos. “Mas essas igrejas
comercializam a figura de Cristo e eu não me sentia feliz com a minha
fé”, diz.
A teóloga Lídia sugere que os sistemas simbólicos das religiões
evangélica e afro-brasileira têm favorecido a circulação de fiéis da
primeira para a segunda. “Há uma singularidade de ritos, como o fenômeno
do transe. Um dos entrevistados me disse que muito do que presenciava
na Igreja Universal (do Reino de Deus) ele encontrou na umbanda”, diz.
Em suas pesquisas, fiéis do sexo feminino foram as que mais cometeram
infidelidade religiosa (67%). Os motivos que levam homens e mulheres a
migrar de religião (leia quadro à pág. 60) foram investigados pela
professora Sandra, da Umesp. Em outubro, suas conclusões serão
publicadas em “Filosofia do Gênero em Face da Teologia: Espelho do
Passado e do Presente em Perspectiva do Amanhã” (Editora Champanhat).
Homens pensam em si quando buscam uma nova crença:
Higuti, pastor da Bola de Neve, queria se livrar das drogas
Uma diferença básica entre os sexos é que as mulheres mudam de
religião em busca de graça para quem está a sua volta (a cura para
filhos e maridos doentes ou a recuperação do casamento, por exemplo). Já
os homens são motivados por problemas de fundo individual. Assim
ocorreu com o empresário paulista Roberto Higuti, 45 anos, que se
tornou evangélico para afastar o consumo e o tráfico de drogas de sua
vida. Católico na infância, budista e adepto da Igreja Messiânica e da
Seicho-No-Ie na adolescência, Higuti saiu de casa aos 15 anos e se
tornou um fiel seguidor do mundo do crime. Sua relação com as drogas foi
pontuada por internação em hospital psiquiátrico, prisão e duas
tentativas de suicídio. Certo dia, cansado da falta de perspectivas, viu
uma marca de cruz na parede, ajoelhou-se e disse: “Jesus, se tu existes
mesmo, me tira dessa vida maldita.” Há cinco anos, o empresário é
pastor da neopentecostal Igreja Bola de Neve, onde ministra dois cultos
por semana. “Quero, agora, ganhar almas para o Senhor”, diz.
Antes de se fixar na Bola de Neve, Higuti experimentou outras quatro
denominações evangélicas. Mobilidades intraevangélicas como as dele
ocorrem com aproximadamente 40% dos adeptos de igrejas pentecostais e
neopentecostais, segundo a especialista em sociologia da religião
Sílvia, da UFRRJ. Os neopentecostais, porém, possuem uma
particularidade. Seus fiéis trocam de igreja como quem descarta uma
roupa velha: porque ela não serve mais. São a homogeneização da oferta
religiosa e a maior visibilidade de algumas denominações que produzem
esse efeito. “Esse grupo, antigamente, era o tal receptor universal de
fiéis, para onde iam todas as religiões. Hoje, a singularidade dele é o
fato de receber membros de outras neopentecostais”, diz Sandra, da
Umesp. “Quanto mais acirrada a concorrência, maior a migração.” A
exposição na mídia, fundamentalmente na tevê, é a principal estratégia
dos neopentecostais para roubar adeptos da concorrente direta. E cada
vez mais as pessoas estabelecem uma relação utilitária com a religião.
De acordo com a pesquisadora Sandra, se não há o retorno (material, na
maioria das vezes), o fiel procura outra prestadora de serviço
religioso. Estima-se, por exemplo, que 70% dos atuais adeptos da Igreja
Mundial – uma dissidente da Universal – tenham migrado para lá vindos da
denominação de Edir Macedo. “Entre os neopentecostais não se busca mais
um líder religioso, mas um mago que resolva tudo num estalar de dedos”,
diz Sandra. “Essa magia faz sucesso, mas tem vida curta, uma vez que o
fiel se afasta, caso não encontre logo o que quer.”
SEM LAÇOS
Lucina não segue nenhum credo, mas quando quer alcançar uma graça
procura algum serviço religioso: 30% fazem o mesmo anualmente
Lucina não segue nenhum credo, mas quando quer alcançar uma graça
procura algum serviço religioso: 30% fazem o mesmo anualmente
Cansada de pular de uma crença para outra, a artesã paulista Lucina
Alves, 57 anos, não sente mais necessidade de pertencer a uma igreja. Há
oito anos, ela diz ser do grupo dos sem-religião. No entanto, recorre a
ritos de fé, principalmente católicos, espíritas e da Seicho-No-Ie,
sempre que sente vontade de zelar pelo bem-estar de alguém. “Há um mês,
fui até uma benzedeira ligada ao espiritismo para ajudar meu filho que
passava por problemas conjugais”, diz. Dados do artigo “Trânsito
religioso no Brasil” revelaram que 30,7% das pessoas que se encontram na
categoria dos sem-religião frequentam algum serviço religioso
anualmente e 20,3% fazem o mesmo mais de uma vez por mês. “Já participei
de reuniões evangélicas de orações em casa de familiares”, conta
Lucina.
A artesã não cultua santos, crê em Deus, Jesus Cristo e acende vela para
anjos. No campo das ciências da religião, manifestações espirituais
como as dela são recentes e vêm sendo tema de novos estudos. A migração
de brasileiros para o islã é outro fenômeno que cresce no País. O número
de convertidos na comunidade muçulmana do Rio de Janeiro, por exemplo,
saltou de 15% em 1997 para 85% em 2009. Ex-umbandista que hoje atende
por Ahmad Abdul-Haqq, o policial militar paulista Mario Alves da Silva
Filho tem um inventário religioso de dar inveja. Batizado no
catolicismo, aos 9 anos estreou na umbanda em uma gira de caboclo e
baianos. Um ano depois, juntando moedas que ganhava dos pais, comprou
seu primeiro livro, sobre bruxaria. Aos 14, passou a frequentar a
Federação Espírita paulista, onde fez cursos para trabalhar com
incorporações e psicografia. Aos 17 anos, trabalhou em ordens esotéricas
ao mesmo tempo que dava expediente na umbanda. O policial, mestrando em
sociologia da religião na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), decidiu se converter ao islã quando fazia um retiro de padres
jesuítas. Em uma noite, sonhou com um árabe que o indicava o islã como
resposta para suas dúvidas. Aos 29 anos, ele entrou em uma mesquita e
disse que queria ser muçulmano. Saiu dela batizado e, desde então, faz
cinco orações e repete frases do “Alcorão” diariamente. “Descobri que
sou uma criatura de Deus e voltarei ao seio do Criador.”
Migração atípica: o policial Filho, de currículo
religioso extenso, trocou a umbanda pelo islã
Faz dez anos que o número de convertidos ao islã no País aumentou. E
não são os atentados às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, que
marcam esse novo fluxo, mas a novela “O Clone”, da Globo. Foi ela que
“introduziu no imaginário cultural brasileiro imagens bastante positivas
dos muçulmanos como pessoas alegres e devotadas à família”, como
defende Paulo Hilu da Rocha Pinto em “Islã: Religião e Civilização – Uma
Abordagem Antropológica” (Editora Santuário), de 2010. “De lá para cá, a
conversão de brasileiros cresceu 25%. Em Salvador, 70% da comunidade é
de convertidos”, diz a antropóloga Francirosy Ferreira, pesquisadora de
comunidades muçulmanas da Universidade de São Paulo (USP), de Ribeirão
Preto.
Assistente financeiro, o paulista Luan Nogueira, 23 anos, tornou-se
muçulmano há um ano. Por indicação de um amigo, passou a pesquisar o
islã e descobriu que o discurso estigmatizado criado após o 11 de
setembro, que relacionava a religião à intolerância e à violência, não
era verdadeiro. “Encontrei na mesquita e no “Alcorão” a ética da boa
conduta”, diz. “Me sinto mais próximo de Deus no islã.” Para o professor
Frank Usarski, do Centro de Estudo de Religiões Alternativas de Origem
Oriental, da PUC-SP, o atrativo do islã é o fato de não ter perdido,
diferentemente de outras religiões, a competência da interpretação
completa da vida. “Ele oferece um guarda-chuva de referências para
esferas como economia e ciência”, diz Usarski.
Ex-liderança evangélica, Garcia largou os cultos cristãos (abaixo) para se tornar pai de santo
Segundo o escritor Pinto, que também é professor de antropologia da
religião na Universidade Federal Fluminense, o islã permite aos adeptos
uma inserção e compreensão sobre questões atuais, como, por exemplo, a
Palestina, a Guerra do Iraque e segurança internacional, para as quais
outros sistemas religiosos talvez não deem respostas. “Se a adoção do
cristianismo em contextos não europeus do século XIX pôde ser definida
com uma conversão à modernidade, a entrada de brasileiros no islã pode
ser vista como uma conversão à globalização”, escreve ele, em seu livro.
É cada vez mais comum, no País, fiéis rezando com a cartilha da
autonomia religiosa. Esse chega para lá na fé institucionalizada tem
conferido características mutantes na relação do brasileiro com o
sagrado, defende a professora Sandra, de ciências sociais e religião da
Umesp. “Deus é constituído de multiplicidade simbólica, é híbrido, pouco
ortodoxo, redesenhado a lápis, cujos contornos podem ser apagados e
refeitos de acordo com a novidade da próxima experiência.” Agora é o
fiel quem quer empunhar a escrita de sua própria fé.
Fonte:Isto É
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